quinta-feira, 28 de maio de 2015

As engrenagens expostas da Friboi

Por Carlos Juliano Barros

Na tarde de 22 de janeiro, William Garcia da Silva fazia faxina no setor mais sujo de sangue e vísceras da unidade de abate de bois do grupo JBS Friboi em Coxim, Mato Grosso do Sul. Ele e seus colegas já haviam avisado ao superior que faltavam grades para isolar componentes perigosos de uma máquina de moagem de ossos e chifres. Mas os alertas foram em vão. Quando se esticou para limpar as engrenagens da moedeira, William teve seu braço violentamente tragado pela máquina.

Sozinho, ele reuniu forças para desprender o corpo do equipamento e correr até o departamento de Recursos Humanos à procura de ajuda. Não havia enfermeiro e nem ambulância de plantão. Por sorte, o encarregado do setor de abate ainda estava no local e conduziu – em seu carro particular – William até o hospital público, a trinta minutos do frigorífico.

O estrago já estava feito: a rosca amputou seu braço acima do cotovelo e deixou “só o cotoco”, como ele descreve. “Se fosse mais tarde, eu teria morrido porque no final do dia só fica o pessoal da faxina, que não tem carro. Não daria tempo de uma ambulância chegar”, desabafa.

William nunca recebeu treinamento para a função que exercia. Ele fazia bicos como jardineiro antes de ser contratado como auxiliar de produção na JBS. Em tese, sua missão diária era abastecer a máquina moedeira. Porém, com a demissão de alguns funcionários, foi escalado para fazer a faxina e a limpeza das máquinas, operação que exige cuidados específicos.

Durante as duas semanas em que ficou internado no hospital, William recebeu a visita de um administrador do frigorífico. Perguntado se a empresa já lhe propôs algum tipo de acordo, ele responde laconicamente: “As coisas estão indo”. Logo depois confessa que prefere não falar sobre o assunto. Aos 24 anos, afirma não estar abalado psicologicamente. Pai de uma menina de oito meses, lamenta apenas “não poder segurar e jogar o bebê para cima”.

O grave acidente que ceifou o braço de William não é um caso isolado nas plantas frigoríficas do grupo JBS, espalhadas por 14 estados do país. A ocorrência de falhas banais de segurança chama a atenção por se tratar da maior processadora de proteína animal do mundo. Turbinada por recursos de bancos públicos como o BNDES e a Caixa Econômica Federal, a JBS registrou receita líquida de R$ 120 bilhões em 2014.

Nas últimas eleições, bateu o recorde de doações de campanha: R$ 366 milhões. Mas o dinheiro farto e os rígidos protocolos corporativos que levaram a JBS ao topo da cadeia alimentar mundial não parecem se refletir no chão de fábrica – principalmente, quando o assunto é saúde e segurança no trabalho.  

Diariamente, funcionários da JBS driblam um variado mosaico de riscos. É esse o diagnóstico do Ministério Público do Trabalho, que move uma série de ações contra a empresa. Em janeiro, a unidade de São José dos Quatro Marcos, no Mato Grosso, entrou na mira por expor seus empregados a jornadas excessivas em ambientes insalubres – o contato prolongado com o sangue de um boi abatido, por exemplo, aumenta a chance de transmissão de doenças como a tuberculose.

O órgão federal exige uma indenização por danos morais coletivos de R$ 10 milhões. No Rio Grande do Sul, máquinas que colocavam em risco a integridade física de funcionários foram interditadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, em dezembro. No Paraná, um vazamento de amônia que intoxicou 66 pessoas levou a planta de Santo Inácio a ser processada em R$ 16,8 milhões, em outubro do ano passado.

Episódios como esses colocam em xeque o comprometimento da multinacional em garantir condições adequadas de saúde e segurança a seus empregados. Revelam ainda a distância entre a realidade do chão de fábrica e a exibida pela publicidade da empresa.

Só nos dois primeiros meses deste ano, outros dois graves acidentes, além do ocorrido com William, vieram a público. Em 03 de fevereiro, Vanderlei Costa Rosa, de 28 anos, empregado de um frigorífico da JBS em Carambeí, Paraná, teve a mão decepada enquanto limpava uma máquina de moagem de suínos. De acordo com uma norma regulamentadora do Ministério do Trabalho, equipamentos desse tipo não podem ser higienizados em funcionamento.

“O Vanderlei foi orientado a realizar a limpeza com a moedeira ligada para não atrasar a produção. Além disso, ele não foi treinado para essa função, não tinha nenhuma experiência”, explica Wagner Rodrigues, secretário-geral do Sindicato da Alimentação de Carambeí. “A máquina não tinha as contenções para evitar acidentes. Ele enfiou a mão para fazer a limpeza de um resíduo e não viu que havia uma lâmina”, acrescenta. Procurado pela reportagem, Vanderlei preferiu não dar entrevista. Tem receio de que a publicidade dificulte as negociações com a empresa.

Dois dias após o acidente com Vanderlei, uma unidade da JBS localizada em Lins, no interior de São Paulo, registrou um caso ainda mais chocante. O mecânico Alexandre Oliveira e Silva, que trabalhou por quase 12 anos no frigorífico, morreu depois de cair em uma máquina de trituração, por volta das 19 horas.

Um inquérito policial apura o que aconteceu, já que ele estaria sozinho no local. Sabe-se apenas que os gritos desesperados do mecânico chamaram a atenção dos colegas, que estavam jantando no momento exato do acidente. Quando um deles finalmente apertou o botão que desligou a máquina, o corpo de Alexandre já havia sido esmagado. Parentes do mecânico também optaram por não se pronunciar. Um membro de sua família já foi e outro ainda é empregado na mesma planta industrial onde Alexandre perdeu a vida.

O braço arrancado de William no Mato Grosso do Sul, a mão decepada de Vanderlei no Paraná e a morte de Alexandre em São Paulo constituem uma pequena amostra de falhas graves detectadas sistematicamente em plantas frigoríficas do grupo JBS em todo o Brasil.

“O que salta aos olhos é a falta de compromisso da JBS. Não há prevenção para coisas básicas”, afirma Mauro Müller, auditor fiscal do Ministério do Trabalho. Em dezembro de 2014, ele inspecionou uma planta de abate de aves no município de Passo Fundo, no interior do Rio Grande do Sul. Alguns equipamentos representavam tantos riscos aos trabalhadores que tiveram de ser interditados.

“Para a máquina de limpar moela, por exemplo, já havia uma CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho) registrada por amputação de dedo nos roletes”, conta o auditor. Mesmo assim, ela continuava em operação, sem qualquer proteção.

É comum que os frigoríficos tentem transferir a responsabilidade dos acidentes – como os que mutilaram William e Vanderlei – para os próprios trabalhadores, acusando-os de praticar “ato inseguro”. Em outras palavras, as empresas argumentam que são os funcionários que se expõem indevidamente a riscos.

“Esse conceito é completamente obsoleto”, argumenta Sandro Sardá, procurador do Ministério Público do Trabalho e gerente nacional do Projeto de Adequação das Condições de Trabalho em Frigoríficos do órgão. Para ele, os principais fatores de risco são a falta de treinamento adequado e a inexistência de proteções no maquinário. “Uma eventual falha do empregado é um evento posterior à falha de segurança do equipamento. Portanto, é consequência e não causa do acidente”, completa.

O auditor Mauro Müller destaca outra questão grave na JBS de Passo Fundo: a manipulação de peso em excesso. No setor de descarregamento de aves, por exemplo, ele flagrou trabalhadores transportando com os próprios braços entre 40 e 50 toneladas por jornada – o Ministério do Trabalho fixa em 10 toneladas o limite máximo diário.

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Carta Capital

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