segunda-feira, 14 de maio de 2012

Dicionário de Ruas de São Paulo

Diário Oficial do Município, 28/12/1991

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Desde a antiguidade, o homem percebeu as muitas vantagens que havia ao aplicar um determinado nome aos locais por onde circulava, sejam aqueles próximos de suas moradas, sejam os mais longínquos. De fato, esta era uma questão muito importante pois assim as pessoas poderiam obter referências seguras de sua própria localização ou orientação num determinado território. Por conta disso a humanidade, aos poucos, acabou por denominar as montanhas, os vales, rios, florestas e, quando a sociedade se organizou em grupos, surgiram o nome de tribos, nações, reinos e países. Seguindo esse mesmo processo, os aglomerados urbanos - as cidades - também receberam nomes específicos e, no interior destas, os logradouros (ruas, praças, pontes, travessas, etc.) também foram identificados com denominações próprias e diferenciadas.

Ao se depararem com um novo continente em 1492, os europeus logo lhe atribuíram o nome de América (homenagem ao navegador Américo Vespúcio), diferenciando portanto as novas terras da velha Europa ou da África. Da mesma forma, o nosso país ganhou o nome de Brasil (um tipo de árvore e madeira comum naquela época no litoral brasileiro) e nossa cidade foi denominada como São Paulo pois ela foi fundada no dia dedicado ao apóstolo Paulo, 25 de janeiro, no ano de 1554. Todos os nomes possuem uma explicação e, no caso específico dos nomes de lugares, a toponímia é a área das ciências humanas que cuida de estudá-los (do grego tópos, lugar + ônimo, nome).

Surgida no entorno de uma capela construída pelos padres Jesuítas (um misto de igreja e escola de catequização para as crianças indígenas) a cidade de São Paulo viu surgir em frente do edifício um pequeno largo. Este foi o primeiro logradouro público da cidade de São Paulo que, pela especialidade do edifício religioso, recebeu o nome de Pátio do Colégio. Com o passar do tempo, outras ruas e travessas, becos e largos foram abertos e denominados.

Nos primeiros séculos de existência, os logradouros paulistanos receberam denominações populares (atribuídas pelo próprio povo) tendo como motivos a predominância de um templo religioso, um aspecto da geografia local, utilizando o nome de um morador muito conhecido ou fazendo referência a um tipo especial de comércio existente nos arredores. E assim foi por cerca de 250 anos, ou seja, quem atribuía nomes às ruas era a própria população, sem qualquer interferência por parte da Câmara Municipal que se constituía no governo local.

Em seu livro "Vida e Morte do Bandeirante" (Empresa Gráfica Revista dos Tribunais, S.P., 1930), Alcântara Machado soube bem apresentar esse aspecto da história paulistana, ou seja, sobre as primeiras denominações dadas às ruas da cidade. Analisando antigos Inventários e Testamentos, ele constatou que "nos processos mais remotos não se mencionava a situação exata dos imóveis" (os endereços das residências). E nem era preciso, porque a cidade era muito pequena e tão poucos eram seus moradores que todos se conheciam. Nos seus primeiros anos, por exemplo, as casas construídas em São Paulo não possuíam números, pois todos sabiam onde elas se localizavam.

Nesse ponto, a curiosidade nos leva a fazer a seguinte pergunta: de que maneira então as pessoas escreviam seus endereços? Alcântara Machado recolheu alguns deles em documentos dos séculos XVI e XVII. Assim, ficamos sabendo que os antigos paulistanos residiam "... pegado com Pedro Taques" "... junto à casa da Fundição", "... junto aos muros dos frades de São Francisco", "... defronte do Colégio", "... defronte do pelourinho", ou "... defronte a Cadeia". E isso bastava, pois os moradores localizavam-se uns aos outros com essas poucas informações.

Posteriormente, apareceram alguns logradouros com uma melhor identificação: "a travessa que vai para as casas do defunto dom Simão", "a rua defronte de João Paes", "a rua em que mora Marcellino Camargo", "a rua em que tem casas Francisco Furtado". Apesar de localizarem-se no chamado centro velho da cidade, primeira área onde as ruas foram abertas, não conseguimos identificar esses antigos logradouros na atual geografia urbana de São Paulo.

Entretanto, ao pesquisarmos as Atas da Câmara Municipal (o mais antigo conjunto documental da cidade) nos deparamos com a primeira menção a uma rua da antiga vila paulistana. Como se trata de um documento histórico, optamos por transcrevê-lo com o português daquela época. Trata-se de uma ata de reunião da Câmara de Vereadores, ocorrida no dia 06 de fevereiro de 1638:
"Aos seis dias do mes de fevereiro de mil seis sentos e trinta e oito anos nesta villa de são paulo nas casas do conselho desta vila onde se fas vereasão se juntarão ahi os vereadores e juis ordinario pero leme e o procurador do conselho pera se faser vereasão e sendo juntos os ofisiaes por eles foi dito ao procurador do conselho se ele tinha que requerer do bem comu desta vila o fisese e pelo procurador do conselho foi dito e requerido aos ditos ofisiaes da camara que lhes requeira desem coreisão visto ser pasado o mes de janero e que outrosi lhes requeria mandasem desaterar hu aterado que estava na rua que vai para santo antonio por que era prejuiso dos moradores que andão por esta vila ..."
Ou seja, os vereadores estavam falando de um "aterrado", um monte de terra que havia no leito da rua e que estava prejudicando o trânsito de pedestres. Por isso, determinaram que se removesse essa terra (desaterrar). Mas, que rua seria esta "que vai para Santo Antonio"? Para decifrar o mistério, precisaremos recorrer a outros documentos. Assim, continuando a leitura das Atas da Câmara, encontramos uma referência ao mesmo caso e que esclarece um pouco mais a questão:
"Aos desanove dias do mes de novembro de mil e seis sentos e trinta e nove anos nesta vila são paulo nas casas do conselho dela onde se fas vereasão se juntarão ahi os ofisiaes da camara vereadores e juis ordinario e produrador do conselho para se faser vereasão se juntarão ahi os ofisiaes sobreditos e por eles foi dito ao procurador do conselho que se tinha que requerer o fisesse e pelo procurador do conselho foi dito que lhes requeria mandassem consertar e aterar a rua que vai da mizericordia pera santo antonio per faser nela laguoas ..."
Em outras palavras, nesta Ata do dia 19 de novembro de 1639, os vereadores denunciavam a existência de um buraco na mesma rua e que, por isso, formava-se ali "laguoas" (lagoas), sendo necessário consertar e aterrar. Nos trechos dos documentos, o primeiro de 1638 e o segundo de 1639, encontramos duas importantes referências: as igrejas da Misericórdia e de Santo Antonio. Delas, a única que sobreviveu até os dias de hoje foi a igreja de Santo Antonio, localizada na Praça do Patriarca. A da Misericórdia, por sua vez, foi demolida em 1888 mas sabemos que localizava-se no Largo da Misericórdia, nas proximidades da Praça da Sé. Com todos esses dados, localizamos o antigo logradouro citado nas Atas: é a atual e muito conhecida Rua Direita. Essa informação inclusive pode ser confirmada ainda pelos documentos, uma vez a mesma rua foi citada depois como "rua direita da Misericóridia" e também como "direita da Misericórdia para Santo Antonio".
Além das ruas, largos e travessas localizadas no interior da cidade, outras vias também já recebiam denominações tais como o "Caminho de São Vicente" (citado em 21/04/1572), o "Caminho da Fonte" (28/06/1572), o "Caminho do Conselho para Virapoeira" (30/03/1575, Virapoeira é o atual bairro do Ibirapuera) e também o "Caminho de Pinheiros", a "Ponte do Tamanduateí", o "Caminho do Mar", o "Caminho de Pequeri", o "Caminho de Ambuaçava" e o "Caminho do Ipiranga" - todos citados em documentos do século XVI.
Entre os séculos XVII e XVIII, já estavam abertas e denominadas no centro histórico as atuais Rua Boa Vista, Rua da Quitanda e a Ladeira Porto Geral, dentre outras. Essas antigas denominações foram das poucas que permaneceram até os dias de hoje, uma vez que algumas extremamente pitorescas (e históricas) acabaram desaparecendo como o Beco da Cachaça (trecho incorporado à Rua da Quitanda), Beco do Inferno (atual Rua do Comércio) Beco dos Cornos (atual Rua da Assembléia).
A grande maioria dessas denominações populares não mais existem seja pela interferência do governo municipal que substituiu grande parte delas, seja pelo simples desaparecimento das vias por conta das várias reformas urbanas que a cidade sofreu. Entretanto, merece destaque na "História das Ruas de São Paulo" o momento preciso em que a Câmara Municipal toma para si a incumbência de regulamentar a denominação dos logradouros públicos da cidade.
Desde 1560 (data da instalação da 1ª Câmara Municipal) e até a Proclamação da República em 1889, o governo local, responsável pela administração da cidade, era exercido apenas pelos vereadores que detinham os poderes legislativo e executivo. Logo após a República, tivemos a criação do cargo de Intendente (um ou mais vereadores com o poder executivo) e, em 1898, tomou posse o primeiro Prefeito, Antonio da Silva Prado. Nesse sentido, durante todo o século XIX, era apenas a Câmara Municipal que legislava sobre as denominações das ruas e, partir do século XX, também o Prefeito.
Entretanto, o início dessa prática pelo governo municipal somente ocorreria a partir de1809, mais especificamente a partir do dia 09 de setembro de 1809. Naquela data, os vereadores paulistanos receberam um ofício do Ouvidor da Comarca, Miguel Antonio de Azevedo Veiga, nos seguintes termos:

"Para a mais pronta expedição do lançamento da Décima que pretendo fazer nos prédios urbanos desta cidade, logo que me recolha da correição das villas do Norte, ordeno a Vossas Senhorias que sem perda de tempo passem a mandar escrever em cada princípio de rua na quina, ou canto de casa, que ficar mais commodo o nome da mesma rua, e consecutivamente em cada propriedade de casa os números por letras de algarismos desde um até ficarem numeradas todas as propriedades de cassa da respectiva rua, começando novamente pelo mesmo número um na seguinte rua, tudo como na primeira, de maneira que em toda a cidade não fique rua, ou beco sem nome, assim como propriedade alguma de casa sem número no alto da porta, que der principal servidão á mesma casa, pela maneira que fica insinuada. Deus Guarde a Vossas Senhorias. Villa de Cunha em correição a - agosto de 1809 - o Ouvidor da Comarca Miguel Antonio de Azevedo Veiga - Senhores juiz presidente e officiaes da Câmara da cidade de São Paulo."
Em outras palavras, o Ouvidor determinava aos vereadores que registrassem as denominações das ruas em placas e numerassem as casas. O motivo para isso era bem claro: a cobrança de impostos! Ora, podemos entender a preocupação do Ouvidor, uma vez que, como vimos, São Paulo era até então uma cidade onde os nomes das ruas não eram oficializados e tão pouco as casas possuíam números. Nesse caso, como controlar o pagamento das taxas e impostos que deveriam ser pagos pelos moradores? De outra parte, aqui fica bem explícito um outro objetivo que seria alcançado através da denominação das ruas e numeração das casas: um controle mais efetivo da população por parte do governo.
Mas, podemos perguntar: por que isso ocorreu somente a partir de 1809? A resposta nos chega a partir de um episódio bastante importante e conhecido da história brasileira, ou seja, a transferência para o Brasil de toda a corte portuguesa em 1808. Instalado no Rio de Janeiro, D. João VI implanta uma nova legislação e exige o cumprimento da antiga, que até então não era seguida à risca. E, nesse caso específico, a cobrança de impostos sobre as propriedades urbanas. É interessante notar que um episódio de nossa história - a chegada de D. João VI ao Brasil em 1808 - apesar de ter sido muito analisado pelos nossos historiadores, guarda ainda esse importante aspecto, pois alterou significativamente o cotidiano ou as vida das pessoas comuns nas cidades brasileiras.
A esse respeito, citamos dois alvarás recebidos pela Câmara Municipal de São Paulo dias antes daquela ordem para nomear as ruas e numerar as casas:
"Pelo Alvará de 3 de junho do corrente anno, é Sua Alteza Real servido mandar nesta capitania o tributo da sisa, que vem a ser dez por cento das compras, e vendas dos bens de raiz, e meia sisa de cinco por cento nas que se fizerem de escravos ladinos em todo o Estado do Brasil, tendo princípio este imposto na data do dito Alvará em diante." 
Por Alvará da mesma data é Sua Alteza Real igualmente servido mandar estabelecer nesta cidade , nas villas, e logares notáveis de serra acima desta capitania a décima nos prédios urbanos para o que se há de proceder nos respectivos lançamentos e ser arrecadada a sobredita décima nos tempos determinados."
Posteriormente, os vereadores tomam todas as medidas preconizadas pelo Ouvidor no que diz respeito à solicitação para a numeração das casas e denominação das ruas. Aos 05/11/1809, por exemplo, eles informaram que "colocaram em praça (uma espécie de concorrência pública) a dita obra para ver que por menos o fazia". Mas, apresentou-se apenas um concorrente "dando o lance de noventa e seis mil réis", um preço exorbitante nas palavras dos vereadores. Por conta disso, resolveram eles que fariam o trabalho de emplacamento das ruas por meio de vários pequenos contratos com empreiteiros, pois assim ficaria mais barato. Consultado a respeito, o Ouvidor aceita a proposta da Câmara e diz textualmente que "á vista de todo o ponderado approvo que Vas. Sas. mandem fazer a mesma obra quanto antes, ou por jornaes, ou de empreitada, tudo com a maior economia, e zelo, como espero."
A partir desse momento, o governo municipal passa a atuar também nesse campo (denominação dos logradouros) que, até então, ficava mais a critério dos próprios moradores. Para um melhor entendimento de todo esse processo e dos passos seguintes dos vereadores, elaboramos uma cronologia que pode ser acompanhada a seguir.



       

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